domingo, 22 de janeiro de 2012

O PM genérico



Por Guaracy Mingardi*

A ideia de especialização não tem muito espaço na Polícia Militar, obrigada a lidar com públicos diferentes como estudantes e 'noias'

Quanto maior e mais antiga a instituição, mais difícil é sua evolução. O tempo transforma os costumes em tradição e depois em regra, e condiciona o recruta desde seu ingresso. Por isso as mudanças são normalmente lentas e necessitam de um empurrão externo.

A Polícia Militar de São Paulo é antiga, grande, e passou nos últimos 20 anos por uma série de mudanças. Parece, porém, que algumas delas não foram completamente assimiladas por todos os grupos internos. Acontecimentos recentes mostram que certos comportamentos persistem, apesar do empenho de alguns policiais. Dois exemplos, flagrados pela imprensa, sustentam essa tese.

Um foi o caso da agressão de um estudante da USP, filmado e transmitido em rede nacional, por um sargento sem condições de trabalhar nas ruas. Ainda mais em um local povoado por pessoas que normalmente se ressentem da presença da polícia. Quem acompanhou o noticiário dos últimos meses sabe da movimentação de alguns alunos da USP contra a presença da PM no câmpus.

O segundo exemplo é a operação na cracolândia batizada Ação Integrada Centro Legal, que, segundo o Ministério Público paulista, foi desastrosa. Os promotores informaram que vão instaurar inquérito civil para identificar os objetivos da ação e também verificar se houve excesso de violência. Segundo eles, a ação foi precipitada, sem coordenação com a Prefeitura, e usou muita violência, causando "dor e sofrimento" desnecessários.

Esses exemplos relatam situações muito diferentes e vão da questão local e do erro individual a ações "planejadas" e coletivas. E a explicação para cada um deles pode ser diferente, mas permanece o fato de que ocorreram num pequeno período de tempo. Portanto, vamos analisá-los, primeiro individualmente, depois em conjunto.

A agressão ao estudante pode ter sido motivada por stress, como alega o sargento. Apesar de a profissão ser mesmo estressante, existem dois fatores na vida dos policiais paulistas que também influem. Um é o baixo salário, que obriga soldados e suboficiais a trabalharem em dias alternados na PM e no "bico", de forma que passam semanas sem uma folga de verdade. Outro motivo do stress profissional é a ideia do "PM genérico", aquele que serve para tudo. É uma visão militar, que implica que todos devem exercer todas as funções, trabalhar em qualquer local e com qualquer público. A ideia da especialização ainda não tem muito espaço na instituição, e atinge poucas funções, principalmente de oficiais. Vendo a discussão entre ele e os estudantes, fica claro que o sargento não é adequado para trabalhar com uma "clientela" que contesta sua autoridade.

Já o confronto na cracolândia não pode ser creditado a um problema individual. Dezenas de policiais agiram na repressão aos "noias". A operação foi, de acordo com a Secretaria de Segurança, pensada, planejada e comandada do começo ao fim. E então, se houve falha, ela deve ter ocorrido na concepção, na execução ou mesmo nos dois extremos. Portanto, o erro foi institucional, independendo do stress dos soldados ou da inadequação de alguns deles para essa ação em particular.

À primeira vista, é difícil encontrar os fatores que liguem as duas falhas. Afinal, uma é individual e a outra, coletiva. O conhecimento da história da PM, aliado à lentidão das mudanças mencionada no início do artigo permite, porém, levantar duas hipóteses sobre o ocorrido.

Um antigo ditado, usado pelos policiais militares que ingressaram no tempo da ditadura militar, é que "paisano é bom, mas tem muito". Ele é fruto de uma ideia vigente na época, que separava a estrutura militar do restante, distanciava o soldado do cidadão comum. Essa visão foi se atenuando, mas nunca desapareceu totalmente. Apesar de a instituição estar mais próxima da sociedade do que há 20 anos, alguns grupos ainda não foram completamente aceitos pela ideologia militar. Em ambas as ações o confronto se deu com o "outro", pessoas de fora da instituição e que estão além dos parâmetros normais. Estudantes contestatórios e usuários de droga em situação miserável.

O segundo fator a ser considerado é menos sociológico e mais político. Logo depois da manifestação dos promotores o secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, saiu em defesa da operação na cracolândia. Disse que eles eram "oportunistas" e que os beneficiários da investigação do MP eram os traficantes. Essas palavras, aliadas às nomeações feitas por Ferreira Pinto nos cargos de comando, mostram que a velha guarda esta voltando à instituição. Se não são os antigos coronéis, já reformados, são aqueles que pensam como antigamente. Alias, o secretário, além de procurador de Justiça, é um ex-oficial da PM que ingressou na instituição durante o período mais duro da ditadura.

O coronel Camilo, atual comandante da PM, tem uma formação mais moderna e ideias mais progressistas, mas não é escolha do secretário. Infelizmente ele vai para a reforma em dois meses. Estamos torcendo pra que não assuma seu posto um desses "coronéis das antigas". O passado não volta e a evolução da PM não pode parar.

*Guaracy Mingardi é associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Doutor em Ciência Política pela USP, pesquisador da Direito/GV.

Fonte: Estadão


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