Há algum tempo atrás um cidadão aparentando ter pouco mais de trinta anos,
vagava pelas ruas centrais de Aracaju, como de costume, pois noutra vez eu já
tinha observado os seus passos nas mesmas cercanias. Mostrava estar triste e
deprimido como nunca, talvez como sempre. O dia de sábado era como outro
qualquer na sua vida e na vida da cidade, pois o vento que soprava quente era
o mesmo, o sol abrasante e causticante a tudo esquentar era o mesmo, as
pessoas indiferentes, passando de um lado para o outro das ruas e nas
calçadas, afastando-se do citado cidadão em misto de medo e asco eram as
mesmas, a agencia bancaria a qual ele entrara era também a mesma.
Entretanto, aquele carrancudo cidadão, barbudo, cabeludo, sujo, maltrapilho,
esquelético, parecendo seriamente doente me lembrava de alguém, alguém
conhecido, alguém que um dia já mantivera algum tipo de contato verbal
comigo, mas, por mais que eu tentasse me lembrar de quem seria aquela
misteriosa pessoa não conseguia. Demasiadamente curioso, dessa vez olhei
mais demoradamente para aquele estranho e intrigante cidadão enquanto ele
tirava dinheiro no cash do banco no mesmo instante em que as outras pessoas
que ali estavam presentes trataram de fugir do recinto pensando ser ele um
assaltante, um bandido ou delinquente qualquer, talvez um maluco andarilho.
Ele não demostrou surpresa pelo fato das pessoas assim agirem, parecia
acostumado com isso, com essa humilhação, sabia que a sua aparência era
assustadora apesar de saber que não era um marginal, parecia não estar ali
naquele momento, noutro mundo, não ligar para o que acontecia a sua volta,
parecia nada temer, talvez se a Terra explodisse para ele seria normal. Temia
somente um novo ataque de bronquite que se avolumava no seu pulmão
devido a tosse grossa e pesada que insistia na sua garganta a fazer tremer a
sua longa e imunda barba que carregava em igual modo com o seu cabelo
escarafunchado e embuchado tal qual uma casa de cupim . As suas
perspectivas eram as piores possíveis. Certamente mergulhado em
pensamentos pessimistas, nem sequer notou que eu sem disfarçar tanto
olhava para ele querendo me lembrar de onde o conhecia, até que o guarda do
banco chegou de um possível cafezinho e me falou: - Tá vendo o que o crack
faz? ... Ele era um Advogado!...
Foi aí que tudo emergiu, veio à tona; foi ai que tudo me chegou à mente; foi ai
que o mistério foi revelado; foi ai que pude decifrar todos seus segredos; foi ai
que vi o quanto o destino das pessoas pode ser cruel para uns e bondoso para
outros; foi aí que eu vi aquele cidadão, antes promissor Advogado conversando
comigo em algumas oportunidades nos corredores do Tribunal de Justiça e
em determinada Delegacia que trabalhei, assuntos relacionados a Processos
criminais ou Inquéritos policiais; foi aí que me lembrei de uma reportagem que
um jornal sergipano fez sobre uma mãe em desespero querendo libertar o seu
querido filho, estudioso, carinhoso, alegre e feliz com a vida, então Advogado
preso nas garras do crack; foi ai que soube que os familiares desse cidadão
tentavam interna-lo em clinica apropriada, mas ele se recusava tal tratamento
por conta do poder avassalador e sobrenatural do crack que o arrastava cada
vez mais para o fundo do poço; foi ai que lembrei que aquele Advogado entrou
no imundo mundo do crack por conta de ter se envolvido com um traficante
após conseguir sua liberdade na Justiça; foi ai que lembrei da citada matéria
jornalística dizendo que aquele Advogado se desfez do seu escritório, do seu
carro, dos seus bens, vendendo ou trocando tudo pelo crack ou para pagar
dívidas com traficantes; foi ai que eu senti que aquele cidadão abandonou a
sua casa e passou a morar no submundo da sociedade de Aracaju, nas ruas,
no mercado central, nas marquises dos prédios ou em pensões baratas junto
à prostituição rasteira, com seus iguais, pelo crack e para o crack; foi ai que
eu imaginei que aquele cidadão então sobrevivia de algum dinheiro que ainda
restava da venda dos seus bens, ou quem sabe, de depósitos efetuados por
familiares na sua conta bancaria; foi ai que eu vi que um cidadão bem vestido,
alinhado, com terno, paletó e gravata impecáveis pode se transformar num
mendigo, num zumbi, num morto-vivo; foi ai que eu vi que a vida daquele
cidadão era somente o crack.
Certamente sentindo-se arrasado, desesperado, impotente para resolver o seu
próprio infortúnio, o seu calvário, lançando um olhar no passado esse cidadão,
antes feliz Advogado, viu o rumo errado que tomou, mas não teve forças para
voltar atrás, não queria se curar, não admitia tratamento porque o crack era
mais forte do que a sua vontade, o crack era mais forte do que ele. O seu
presente era só o crack, o crack como o senhor do seu viver, o crack como seu
dominador, o crack como destruidor da sua família, o crack como aniquilador
da sua vida. Crack e desgraça são indissociáveis e quase palavras sinônimas.
O crack é o grande mal do século, o mal dos males, a pior de todas as drogas,
que se não for um mal que todos nós estejamos esclarecidos, irá nos afetar
em qualquer momento de nossa vida ou na vida de quem mais amamos, como
de fato aconteceu com esse cidadão e sua família, um jovem que estudou
nos melhores colégios, que teve boas amizades, que se formou em Direito,
que se tornou um Advogado, que tinha um bom escritório, que pretendia ser
juiz por isso adormecia em cima de livros de tanto estudar, que tinha um bom
futuro pela frente, mas que por ironia do destino, pelo poder sobrenatural dessa
droga, tudo trocou pelo crack.
Rodeado e instado pelos sentimentos humanitários de enternecimento,
compaixão, piedade até porque sempre fui dos maiores combatentes do crack,
tanto na área repressiva quanto preventiva, com prisão de grandes traficantes
na minha careira policial e inúmeros artigos de minha autoria pertinentes
ao tema publicados em centenas de sites do Brasil, Portugal, Angola e
Moçambique, logo pensei em falar com ele, oferecer algum tipo de ajuda moral,
espiritual, mas seu olhar sisudo e com possibilidade de algum tipo de agressão
me afastaram, me reprimiram até porque ele também não me reconheceu.
Entretanto, todas as vezes que caminho pela citada área de Aracaju, procuro
em vão e insistentemente com os meus curiosos olhos pelo triste cidadão
entre os inchadinhos de cachaça ou barbudinhos zumbis do crack em muitos
espalhados pela redondeza. Se o cidadão aceitou fazer tratamento, se fez
ou faz tratamento em clinica de recuperação não sei, só sei que o poder de
imensa e infinita bondade do nosso Criador pode sobrepor e derrotar o poder
sobrenatural do crack como assim já fez com muitos. Assim, um dia espero ver
aquele alegre Advogado de volta aos corredores do Tribunal de Justiça ou em
Delegacias defendendo os seus clientes, menos os traficantes.
Autor: Archimedes Marques (Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-
Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela Universidade
Federal de Sergipe) – archimedes-marques@bol.com.br
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