A herança banguela (série Casos Policiais)
(Archimedes Marques)
De uma comunidade paupérrima do município de Barra dos Coqueiros no final
dos anos 80, época em que por dois anos estive como Delegado Titular da
Delegacia de Polícia local, então apareceu um fato policial inusitado, cômico, e
até certo ponto comprovante do que vem a ser a ignorância total e a pobreza
absoluta vivida pelo ser humano dentro de um país rico como é o Brasil.
Há alguns quilômetros da cidade sede daquele município, mais de perto às
margens do rio Japaratuba que faz divisa com o vizinho município de Pirambu
localiza-se uma pequena faixa de terra que era então conhecida por Ilha do
Rato onde na época existiam várias casas de taipa, madeira e palhas de
coqueiros, construídas à beira do rio ou em meio ao manguezal ali existente.
Ali naquele pedaço de terra em que lutavam o homem com o caranguejo
por um melhor espaço, uma senhora havia falecido de morte natural e então
os seus três filhos, demais familiares e outros moradores da Ilha do Rato,
trouxeram o corpo em cortejo fúnebre acompanhado por várias carroças para
que fosse enterrado no cemitério da cidade sede do município.
Entretanto, no trajeto descobriram que a defunta estava sem a dentadura
superior. Furtaram a dentadura da falecida... E então uma irmã acusou a outra
pelo crime praticado contra a sua mãe, ou melhor, contra a defunta.
Depois do verdadeiro “barraco” em que as duas irmãs praticaram agressões
físicas e morais mutuamente em público já na cidade, o caso foi levado por
populares para resolução da Polícia e enquanto isso a defunta “aguardava”
na porta do cemitério ao relento no sol escaldante dentro de um caixão
improvisado sem tampa, a minha decisão para a estranha contenda.
- Foi ela doutor... Foi essa cachorra que roubou a dentadura da minha
mãe... Ninguém tinha notado isso porque a minha mãe estava com a boca
fechada, mas com o balanço da carroça a boca dela se abriu e então eu
vi que ela estava sem a dentadura... Só pode ter sido ela... Eu notei que
quando a gente saiu de casa a minha mãe estava com a dentadura e
foi ela quem veio também na mesma carroça... Essa miserável também
não ficou satisfeita com a divisão da herança e por isso ela roubou a
dentadura que minha mãe ganhou na eleição passada...
Lembrei-me da história que o povo contava que certo candidato em campanha
política chegava aos povoados daquele município com uma bacia cheia de
dentaduras e as pessoas desdentadas saiam experimentando uma por uma
para ver a que melhor lhe servia... E então para acalmar os animus acirrado
das duas irmãs, puxei conversa e perguntei curioso sobre a tal herança:
- Eu fiquei com três vestidos, duas saias, duas calças, quatro blusas,
um sapato, duas toalhas, uma chinela, o lampião a gás, um pote, quatro
copos e dois pratos com os talheres que eram da minha mãe, e ela ficou
com três blusas, uma chinela, três lençóis, uma rede de dormir, um jereré
de pescar siri, uma moringa, o pinico pra mijar de noite e três panelas,
mas aí ela queria mais e terminou roubando a dentadura da minha mãe...
- Sim, mas pra que é que ela ia querer a dentadura da sua mãe?...
- Não ta vendo não doutor que ela também é banguela?... Arrancou os
dentes dia desses que já estavam todos podres...
- Você esta querendo me dizer que ela furtou a dentadura da sua mãe para
uso próprio?...
- Só pode ser doutor... Essa miserável é capaz de tudo... É uma unha-de-
fome e só quer levar vantagem em tudo...
E então depois da acusação dei a palavra para a defesa, falando para
confundir a cabeça da suspeita:
- Bom, agora chegou a hora de você falar... Se for verdade a acusação da
sua irmã você negue e se for mentira você diga que é verdade...
- É mentira dela doutor, eu não roubei nada não... Ela está inventando
tudo isso para que o senhor me prenda e ela fique com a herança só pra
ela...
- Ta vendo que você é culpada?... Se eu mandar revista-la você vai ser
desmascarada, mas vamos fazer o seguinte para resolver o problema
agora mesmo: Eu dou a minha palavra que não vou mandar prende-
la, mas quero que você seja sincera e fale somente a verdade que é
para a gente tentar fazer um acordo e terminar esse caso da melhor
maneira possível... Você devolve a dentadura para a boca da sua mãe e
eu prometo também que vou pedir ao Prefeito da cidade uma dentadura
novinha para você...
Ela pensou um pouco, olhou sério nos meus olhos e decidiu pelo melhor:
- Promete mesmo doutor?...
- Palavra de Delegado!...
- Fui eu mesma quem tirou a dentadura dela doutor... Ela não ia precisar
mais mesmo... Eu ia lavar bem lavada e experimentar pra ver se dava em
minha boca e dizer pra todos que tinha ganhado de um politico... Mas aí
o senhor que é um homem bom já me prometeu uma nova e então vou
colocar a dentadura de volta na boca dela que é pra ela ficar mais bonita
quando for se apresentar a São Pedro...
De imediato levantou o vestido e tirou de dentro da calcinha uma nojenta e
encardida dentadura. Naquele momento dei uma gargalhada, daí telefonei
para o Prefeito que concordou em mandar fazer uma dentadura para a pobre
coitada, e então finalizei o caso aconselhando:
- Esqueçam o que aconteceu, pois o caso já está resolvido. Não quero
mais briga. Reúnam o pessoal que está aí fora e vá todo mundo logo para
o cemitério enterrar a mãe de vocês que já deve estar torrada nesse sol
quente.
Autor: Archimedes Marques (Delegado de Policia no Estado de Sergipe.
Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Segurança Pública pela UFS) –
archimedesmarques@infonet.com.br - archimedes-marques@bol.com.br
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