Prezados Senhores,
Estou fazendo uma pesquisa e encontrei este texto muito interessante, tem o caso da Florinda que parece as manchetes dos dias atuais. Atenciosamente, Wanda
Os crimes que abalaram
São Paulo no século XX
Edgard Luiz de Barros
“Eu nem sei si vale a pena
Cantar São Paulo na lida,
Só gente muito iludida
Limpa o gosto e assopra avena,
Esta angústia não serena,
Muita fome pouco pão,
Eu só vejo na função
Miséria, dolo, ferida,
Isso é vida?”
Mário de Andrade
Além da “lida”, São Paulo também é hoje a metrópole da violência, a cidade do medo e do crime. Não se trata apenas, como diz o trecho da canção famosa, de um lugar onde “o crime engana e a vida é grana”, mas de uma percepção cultural da cidade onde os habitantes se sentem mais reféns que moradores.
Como tudo na metrópole, os números são esmagadores. São Paulo é a 107ª cidade mais violenta do mundo, de acordo com a ONU (o Rio de Janeiro ocupa a 118ª colocação, e a Cidade do México, tida como extremamente perversa, ocupa a 127ª). Os 49 mil policiais militares que patrulham as ruas de nossa capital efetuam cerca de 12.OOO agrantes por mês, e o Estado de São Paulo detêm
mais de 40% da população carcerária do país. Somente no que refere ao crime de homicídio, um levantamento feito pelo Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade no Município de São Paulo (Pro-Aim) constatou que 4.999 pessoas foram assassinadas em 2003 na capital. Desse total, nada menos que 2.071 tinham entre 15 e 24 anos. Isso signica dizer que seis jovens por dia, em média um a cada quatro horas, são vítimas de homicídio em São Paulo. O ProAim constatou também que mais de 93% das vítimas são do sexo masculino. Em 1920, o número de homicídios registrados na cidade foi de 24 casos ...92 Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 Enm, o crime em São Paulo é um tema indissociável da própria compreensão de uma identidade cultural da cidade, sobretudo se pensarmos que a denição de uma identidade possível nos 450 de sua fundação passa, obrigatoriamente, pela percepção da paisagem humana e de uma lógica da mudança permanente. Assim, mais do que a descrição de casos célebres e emblemáticos, o que interessa no presente trabalho é a visualização do crime e dos criminosos no quadro de nossa história ao longo dos últimos e decisivos cem anos paulistanos.
A gênese da violência e da grande cidade
Da mesma forma como não se pode, teleologicamente falar de continuidade quatrocentenária na evolução urbana de São Paulo, não é possível estabelecer critérios modernos para situar o conceito de criminalidade já no início da formação da cidade. Por outro lado, São Paulo já nasceu sob a égide da violência, com a predação dos habitantes originais do Planalto e o sistemático massacre das populações indígenas. Uma imagem em madeira de São Miguel, elaborada no período das Missões (1682-1706) na cidade de São Gabriel (RS), ilustra muito bem a fama dos paulistas no período colonial: em vez de ter o demônio sob seus pés, como na
representação clássica, o arcanjo pisoteia a gura de um bandeirante, o ícone mais acabado de desbravador de São Paulo.
A imagem demoníaca do bandeirante paulista não era uma exceção no imaginário do período colonial. O historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu Caminhos e Fronteiras, relata a terrível fama das “gentes de São Paulo” pelo
país afora. O capitão Juan Francisco Aguirre (1758-1811), comissário enviado pela Espanha para demarcar as fronteiras com Portugal, anotou em seu diário que “o nome de paulista é assombroso para os inéis (índios) , que lhes cobraram um terror pânico.” Rodrigo César de Menezes, governador de São Paulo entre 1721 e 1727, conta que os castelhanos chamavam os paulistas de “feras”.
Mas a violência no período colonial não pode ser vista como a antepassada da criminalidade contemporânea. No máximo, podemos encará-la como uma espécie de “linguagem corrente” típica do período, característica, inclusive, da função de legitimação da dominação portuguesa.
Os crimes na antiga e pobre Vila de Piratininga mal eram registrados. O primeiro caso de homicídio documentado na cidade só aparece em 1583, 29 anos depois da fundação ocial. A vítima era um franciscano espanhol, frei Diogo, assassinado por um soldado raso também espanhol, nas imediações da Luz. O religioso mendicante teve o infortúnio de pedir esmola justamente a militar coxo e anticlerical. Os problemas recorrentes nessa época eram a inexistência de cadeia na Vila, e a necessidade de reconstruir as muralhas que cercavam o triângulo em que estava o Pátio do Colégio, constantemente atacadas pelos índios.
Ataques esses que eram uma reação à violência dos colonizadores portugueses.Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 93
Durante os períodos colonial e imperial brasileiros, as atividades que regulavam as relações entre os homens e a sociedade estiveram sob rígido controle dos governos centrais. As Ordenações do Reino e, posteriormente, a Constituição do Império, estabeleceram de forma exclusiva os direitos e obrigações dos cidadãos, servindo como base para a elaboração do Código Criminal e do Código do Processo Criminal. Mas apesar da rigidez burocrática colonial, os séculos 17 e 18 tinham, em São Paulo, uma justiça bastante elástica. O crime de homicídio, por exemplo, só era punido quando o autor atingia a sétima ou a oitava vítima. Anal, não se podia prescindir de homens saudáveis naquela época, pois havia falta crônica de braços na cidade. São Paulo era um lugar tão remoto e miserável, que chegava a funcionar como abrigo de criminosos da Bahia e de Pernambuco.
As capitanias possuíam em suas normas legais vigentes o “direito de couto”, isto é, um criminoso de outra capitania tinha o direito de refugiar-se em São Paulo sem ser punido.
Nas últimas décadas do século XIX, entretanto, tudo começou a mudar e o vislumbre da grande cidade também iniciou o primeiro desenho contemporâneo da criminalidade em São Paulo. De 1890 até cerca de 1940, o espaço urbano e a vida social em São Paulo foram caracterizados por concentração e heterogeneidade. Na última década do século XIX, a população da cidade cresceu 13,96% ao ano (ver tabela abaixo), e a área urbana sofreu um forte adensamento.
EVOLUÇÃO DA POPULAÇÃO
Cidade de São Paulo e Região Metropolitana, 1872-1996 Ano São Paulo Taxa de crescimento anual_(%)
Outros municípios da RM Taxa de crescimento anual_(%) Regiã o metropolitana Total
Taxa de crescimento anual_(%)
1872 31.385
1890 64.934 4,12
1900 239.820 13,96
1940 1.326.261 4,23 241.784 1.568.045
1950 2.198.096 5,18 464.690 6,75 2.662.786 5,44
1960 3.781.446 5,58 957.960 7,50 4.739.406 5,93
1970 5.924.615 4,59 2.215.115 8,74 8.139.730 5,56
1980 8.493.217 3,67 4.095.508 6,34 12.588.725 4,46
1991 9.646.185 1,16 5.798.756 3,21 15.444.941 1,88
1996 9.839.436 0,40 6.743.798 3,07 16.583.234 1,43
Fonte: Para 1872-1991, IBGE, Censo Brasileiro; para 1996, IBGE, Contagem 1996.
Obs: A região metropolitana de São Paulo é formada pelo município (cidade) de São Paulo e outros 38 municípios adjacentes (OM).94 Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203
Com o advento das primeiras fábricas e da industrialização, a outrora tranqüila cidade voltada aos serviços e negócios nanceiros associados à exportação de café – atividade econômica dominante no estado de São Paulo até a década de 1930 – foi transformada num espaço urbano caótico. Na virada do século XX, a construção era intensa: erguiam-se novas fábricas uma atrás da outra, e residências tinham que ser construídas rapidamente para abrigar as ondas de trabalhadores chegando a cada ano. Os novos habitantes que chegavam para o trabalho, primeiro nas lavouras cafeeiras e em seguida para a atividade fabril, eram principalmente imigrantes europeus. Atraídos pelas oportunidades de emprego, eles vieram para o Brasil incentivados por uma política destinada a importar trabalhadores brancos qualicados para substituir os ex-escravos negros e “branquear” a população brasileira. Em 1893, as pessoas nascidas no exterior representavam 53% da população da cidade, de acordo com o censo. Esse foi o pico da imigração estrangeira, que diminuiu depois de 1900, quando a taxa de crescimento da população começou a cair. Em 1920, os estrangeiros representavam 36% da população.
A explosão demográca e as péssimas condições de vida da população despossuída, de certa forma, potencializou condições para uma primeira expressão de criminalidade. A elite paulistana, a mesma que dizia que “a questão social era apenas um caso de polícia”, na frase de Washington Luís, presidente entre 1926 a 1930, demonstrava, então, a ambição de combater a criminalidade com uma receita “cientíca”. Conforme o historiador Boris Fausto, autor do clássico Crime e Cotidiano: a Criminalidade em São Paulo (1880-1924):“a elite achava que ia embelezar a cidade com a reforma urbana, colocar os pobres nos seus lugares e reduzir a delinqüência” (Folha de S. Paulo, 28.11.2003).
Era a receita positivista para enfrentar o surgimento da criminalidade moderna no espaço paulistano.
O crime “Folhetim”e o “Bandido Robin Hood”
Apesar de manifestações cada vez mais sistemáticas de violência urbana, inclusive do ponto de vista de repressão política policial ao nascente movimento operário, o crime em São Paulo nas primeiras décadas do século XX tinha uma certa aura de redenção e revolta, envolta em sombrio romantismo. Muitas vezes, tudo se passava como num folhetim urbano, com a população transida acompanhando o desenrolar dos fatos e das investigações.
Logo na metade da primeira década do século, um dos episódios que mais comoção causou na cidade em expansão foi o chamado “Caso do Quartel da Luz”, com o assassinato do tenente Negrel. O notável Raoul Negrel, tenente do 24º Regimento de Infantaria do Exército francês, desembarcou na Estação da Luz em 21 Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 95
de março de 1906. Era um dos três ociais de alta patente cedidos pelo governo da França para adestramento da então Força Pública de São Paulo. Tratava-se de uma verdadeira reestruturação da tropa, e o tenente, que receberia as vantagens e
as honras do posto de tenente-coronel, rapidamente ganhou prestígio e simpatia entre seus novos camaradas. Qual não foi a surpresa, então, quando, em 10 de junho daquele ano, o militar francês foi atingido, juntamente com outra vítima,
o alferes Manoel de Moraes Magalhães, por tiros de carabina disparados por um sargento enraivecido, em verdadeira crise de xenofobia. Dois anos depois, a cidade cou ainda mais chocada com a descoberta de um assassinato bárbaro: o conceituado industrial de sapatos Elias Farhat foi assassinado por um pretenso amigo e ex-empregado, Michel Trad, encaixotado dentro de um grande baú reforçado por uma caixa de zinco, e levado a um navio que zarpou do porto de Santos, para ser atirado ao mar. Descoberto, o assassino confessou o crime (motivado pela relação que teria com a mulher do industrial, a bela italiana Carolina), foi julgado, condenado. Após dezesseis anos de prisão, um decreto do governador do Estado permitiu que Trad ganhasse a liberdade. Escreveu um livro, abriu um escritório de representações comerciais ... e voltou para a cadeia. A polícia descobriu que ele havia desenvolvido uma nova atividade: tráco de drogas. Dessa vez, Michel Trad acabaria sendo expulso do país, deixando o porto de Santos só com uma pequena mala – sem nenhum corpo dentro – no dia 10 de janeiro de 1928, para nunca mais voltar.
Curiosamente, no mesmo ano da expulsão de Trad ocorreria um segundo “crime da mala”, ainda mais brutal e que causaria um verdadeiro frenesi em São Paulo. Em outubro de 1928, José Pistone, com 21 anos, italiano radicado em São Paulo, matou a mulher Maria Fea. Ao que tudo indicou, sufocou a bela Maria Fea com um travesseiro após uma discussão, mutilou e esquartejou o corpo, colocou-o em uma grande mala e despachou a “encomenda” para o vapor Massilia. Antes do navio zarpar do porto de Santos, porém, o mau cheiro denunciou o cadáver dentro do baú. Ele foi aberto e o crime descoberto. José Pistone havia permanecido em terra, mas
as investigações levaram à sua prisão. Cumpriu pena durante cerca de vinte anos e morreu doente, como zelador de um prédio em Taubaté, em 1956. Até hoje o túmulo de Maria Fea em Santos recebe visitas, orações e pedidos populares.
Os chamados “crimes de honra” também abalavam os paulistanos nas primeiras décadas do século XX. Um dos mais famosos foi o da professora Albertina Barbosa que, tendo sido desvirginada e engravidada por um sedutor, o advogado Arthur Malheiro de Oliveira, o matou a tiros em plena terça-feira de carnaval de 1909, dia 23 de fevereiro, no Hotel Bella Vista, próximo à Rua 15 de Novembro.
Albertina, que esperou a chegada da polícia junto ao corpo, foi presa e transferida para a Cadeia Pública onde aguardaria o julgamento. Seu processo foi conturbado: na terceira instância, após uma absolvição e uma condenação, os jurados 96 Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 concluíram que ela estava em “completa privação dos sentidos e da inteligência no momento do crime” e concederam sua liberdade em 19 de abril de 1910. Um grupo de arruaceiros teve de ser retirada à força do tribunal, pois não paravam de dar vivas ao marechal Hermes da Fonseca.
Do ponto e vista dos crimes contra o patrimônio, a São Paulo da República Velha teria alguns dos mais famosos ladrões “românticos” da história da criminalidade no Brasil. O maior arrombador de cofres de todos os tempos foi o mecânico italiano Frederico Gobbi, que começou a roubar em 1908 e só parou quando foi deportado, aos 70 anos, em 23 de novembro de 1928, para Gênova. Frederico
chegou mesmo a inventar um complexo maquinário – o “aparelho de Gobbi” para perpetrar seus crimes. Seu maior assalto ocorreu no dia 9 de abril de 1915. Com mais dois parceiros, ele “depenou”a casa Edmond Hanau & Comp., considerada a mais importante e tradicional joalheria da cidade. Os ladrões entraram no prédio da joalheria, na Rua São Bento, abrindo um buraco na parede do edifício vizinho.
O trabalho foi demorado, pois a retirada dos 75,5 cm de parede demorou alguns dias. Gobbi retirou os tijolos com tanta precisão que não quebrou nenhum deles.
Com sua máquina, o arrombador abriu um imenso cofre e apropriou-se de monumental fortuna em jóias, pedras preciosas e dinheiro.
O maior e mais legendário de todos os ladrões da época, entretanto, foi Gino Amleto Meneghetti, o “Rei dos Telhados”. Meneghetti nasceu em Pisa, na Itália, em 1888, e chegou ao Brasil em 25 de julho de 1915. Agilíssimo, politizado, assaltava de terno e gravata, deixando em algumas residências até um cartão com seu nome. Em 4 de junho de 1926, após uma troca de tiros, ele teria matado Waldemar Mondim da Costa Doria, primeiro delegado de polícia morto em serviço em São Paulo. Meneghetti foi preso muitas vezes. Passou dezoito anos trancado em uma solitária na Penitenciária do Estado. Nas palavras do jornalista Percival de Souza, autor de O Prisioneiro da Grade de Ferro: “diziam até, com certo carinho, que ele seria o nosso Àrsene Lupin, o nosso Robin Hood. Anos 30 e 40, prédios sendo derrubados, e Meneghetti sozinho na sua cela, cuspindo nos guardas, sendo algemado nos pés e mãos, a berrar io sono
uomo (eu sou homem). Batizou um dos lhos com o nome de Spartacus, o escravo que desaou o Império Romano. O outro lho chamou-se Lenine, o revolucionário russo, que nasceu um ano depois de 1917. Por isso, dizia-se que Meneghetti não era um bandido qualquer, era um bandido social, um subversivo, um homem de idéias anarquistas (a polícia é formada por lacaios dos ricos).”
Após muitas idas e vindas da prisão, cumprindo longas penas, Meneghetti recebeu do então governador Adhemar de Barros, no início da década de 1960 a autorização para a instalação de uma banca de jornal na Avenida Ipiranga, no centro de São Paulo. Sua última detenção, entretanto, ocorreria em 1970, com 82 anos, quando policiais militares o prenderam na rua Fradique Coutinho, com um Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 97pé-de-cabra, um martelo e uma talhadeira. Ele estava quase cego, surdo e andava com diculdade. Praticamente sem os movimentos dos braços e das pernas, vítima de uma trombose, o bandido morreu em maio de 1976. Vizinhos acusaram parentes de Meneghetti de não dar comida ao idoso. Assim terminou a lenda de Gino Amleto Meneghetti, o “Rei dos Ladrões”
O Castelinho, o Restaurante Chinês , o “Monstro de Guaianazes” e a “Macumbeira da Morte”
Os primeiros anos da década de trinta foram particularmente perturbadores para a cidade de São Paulo. Entre outubro de 1930 e setembro de 1934, ano da nomeação de Fábio da Silva Prado, a cidade contou com nada menos do que dez chefes diferentes do Executivo municipal, mais do que o dobro dos prefeitos do período anterior, que se estendeu por trinta anos. Ao mesmo tempo, as classes dominantes paulistas relutavam em aceitar os jovens ociais éis ao Governo Provisório de Getúlio Vargas designados como interventores do Estado, o que também provocava instabilidade nas máquinas administrativas
municipais e estaduais.
Mas a instabilidade política da década não implicava em descontrole na ocupação do espaço urbano, nem em intranqüilidade social em termos de aumento da criminalidade. Havia, mesmo, uma permanente sensação de segurança nas ruas, no transporte coletivo (os bondes) e nos estabelecimentos comerciais. Nem a comoção causada pelo Movimento Constitucionalista de 1932, com a subseqüente
derrota paulista e a ocupação do Estado, propiciou qualquer aumento signicativo da marginalidade e a multiplicação de crimes. Muito diferente dos tempos dramáticos da Revolução de 1924, quando a cidade foi bombardeada, com a população
fugindo em massa para o interior e a existência de saqueadores nas ruas, em 1932 a capital paulistana não sofreu efeitos físicos da derrota militar.
Ao longo dos anos trinta, pode-se dizer que dois dos crimes mais famosos de todos os tempos, que cariam para sempre no imaginário da cidade, ocorreram em 1937 e 1938.
Na noite de 12 de maio de 1937, São Paulo cou paralisada com uma tragédia descoberta em uma mansão localizada na esquina da Rua Apa com a Av. São João, um verdadeiro castelinho medieval, com torres e ameias nas muradas. Ali estavam os corpos da família Reis, ricos proprietários do famoso Cine Broadway, de terrenos e casas no nobre bairro do Pacaembu. Conforme a versão policial ocial, o lho Álvaro César dos Reis, engenheiro, desportista com perl de playboy, com 45 anos, tinha planos de transformar o cinema da família em um ringue de patinação de gelo, que seria o primeiro do Brasil. Como a mãe, Maria dos Reis, de 73 anos, não concordou em dar a grande soma para o caríssimo empreendimento, 98 Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 ele a matou, assassinou em seguida o irmão Álvaro e se suicidou com dois tiros no peito. A mansão da Rua Apa, conhecida como o “Castelinho”, era uma referência na região central de São Paulo, e a família Reis muita conhecida na cidade.
O crime do Castelinho deixou os paulistanos em polvorosa, com um bombardeio incessante da imprensa e todo tipo de “ revelações” especulativas. Fechando a hipótese dos assassinatos seguidos de suicídio, a polícia encerrou as investigações e concluiu o inquérito, mas essa conclusão até hoje é refutada por pesquisadores como o ex-policial Milton Bednarski, que se especializou em estudar crimes antigos. Em várias declarações, ele arma taxativamente que haveria uma quarta pessoa no Castelinho naquela noite - talvez até um parente – e, visando a herança da fortuna dos Reis, assassinou os três membros da família. Outra pesquisadora, Susan Iannace, também compartilha essa hipótese , considera Álvaro inocente e continua trabalhando para descobrir o verdadeiro assassino. Seja como for, a vítima nal dessa história seria o próprio Castelinho, amargando até os nossos dias a fama de “mal-assombrado”, e existindo apenas como uma triste ruína.
Na quarta-feira de cinzas de 1938, dia 1º de março, a cidade e o delegado de plantão na Central de Polícia, Alfredo de Assis, levaram um grande susto. A polícia do centro, acostumada a investigar apenas pequenos furtos e registrar casos de brigas, descobriu quatro corpos assassinados no chão de um dos primeiros restaurantes chineses da capital, na Rua Wenceslau Brás, número 13. Era o
famoso “Crime do Restaurante Chinês”, com o assassinato de seus proprietários, Ho Fung e Maria Akiau, mais dois empregados. Os homens foram atingidos com golpes de madeira na cabeça e a mulher foi estrangulada. Mais tarde, os peritos descobriram que Maria também sofreu uma ruptura no fígado, causada pela pressão dos joelhos do assassino sobre seu corpo, enquanto apertava sua
garganta. Nada foi roubado.
Quem primeiro encontrou os cadáveres foi o cozinheiro Pedro Adulkas, que correu para informar à polícia. Tudo se fez para apurar a autoria daquela terrível chacina para a época. As investigações policiais conduziram ao suspeito Arias de Oliveira, um ex-empregado demitido pelo patrão. O caso se arrastou durante anos. Oliveira foi inicialmente condenado em 1940, mas seu advogado, o criminalista Paulo Lauro (que seria prefeito de São Paulo em 1947), contratado pela Frente Negra do Brasil para defendê-lo, recorreu da sentença e conseguiu um novo julgamento no Tribunal do Júri. Paulo Lauro, habilíssimo advogado, conseguiria demolir a prova material (um paletó encontrado no local do crime, pretensamente pertencente a Arias) e nublar as conclusões policiais. Venceu a batalha e conquistou a liberdade para o acusado. Voto vencido, o desembargador Amorim Lima declarou: “Raramente um crime misterioso foi tão bem elucidado por um conjunto harmônico de provas. Eis por que, optei pela condenação desse terrível facínora.”Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 99 Arias de Oliveira saiu da prisão em 27 de agosto de 1942 e obteve uma indenização do Estado pelos quatro anos que passou atrás das grades. Trabalhou como motorista de taxi e negou, até morrer, sua autoria no “Crime do Restaurante Chinês”.
No começo da década de 1940, a capital paulista já era a cidade que mais crescia no mundo em área e população. Em 1941, São Paulo se caracterizava como o maior centro industrial da América Latina, com cerca de 4.000 fábricas e mais de 1.300.000 habitantes. Entre 1939 e 1949, o número de operários fabris aumentou em 81%, enquanto o valor da produção industrial cresceu nada menos
do que sete vezes. A infra-estrutura urbana também se expandiu, mas sempre com atraso em relação às necessidades da população.
Gigantescas obras alteravam intensamente a paisagem urbana e acelerava-se a migração urbana, com milhares de nordestinos chegando a São Paulo. A cidade possuía doze bibliotecas, dez estações de rádio e setenta cinemas e teatros.
A primeira grande preocupação do Executivo municipal, cheado por Francisco Prestes Maia (nomeado em 1938 e presente no poder até 1945) foi o prosseguimento da ligação do centro, extremamente adensado e verticalizado em função da concentração de estabelecimentos comerciais e nanceiros e das burocracias públicas e privadas, com os principais bairros ao redor, através de
longas avenidas radiais.
A tremenda concentração populacional (que atingiria a cifra de 2,5 milhões de pessoas em 1954, ano das comemorações do IV Centenário) e a expansão da área urbana, com a formação sistemática de novos bairros e loteamentos também
ajudou a redesenhar a criminalidade na cidade. Os pequenos crimes, sobretudo furtos e roubos, começaram a se multiplicar, e as difíceis condições de moradia e sobrevida (com o processo de cortiçamento e o surgimento das primeiras favelas) provocavam conitos mais sistemáticos entre as pessoas, inclusive propiciados pelo crescente alcoolismo.
Os grandes crimes violentos também continuaram a atrair a atenção da imprensa e da população. Em 1948, por exemplo, uma tragédia chocaria a cidade. No mesmo lugar onde vinte e seis anos mais tarde, em 1974, ocorreria o enorme incêndio do Edifício Joelma (que matou mais de cem pessoas), na esquina da Rua Santo Antônio com a Av. Nove de Julho, um professor e químico farmacêutico, Paulo
Ferreira de Camargo, assassinou a mãe e as duas irmãs e escondeu os corpos. Interrogado pela polícia, Camargo se mataria no banheiro de sua casa, em novembro de 1948, levando para o túmulo os motivos que o zeram cometer a chacina.
No início da década de 1950, o que mais aterrorizava a cidade era o pior maníaco sexual jamais surgido em São Paulo, que percorria os bairros e regiões mais distantes do centro, estuprando e matando. Seu nome era Benedito Moreira de Carvalho, e ele seria nalmente preso em 30 de agosto de 1952, após um intenso e brilhante trabalho de investigação policial. Capturado e interrogado, Carvalho 100 Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 confessou imediatamente dez dos seus crimes, sem nenhum constrangimento ou remorso. Entre os mais recentes, estavam dez estupros, sendo nove acompanhados de homicídio. Na verdade, Benedito, conhecido como o “Monstro de Guaianazes”, já havia sido preso outras três vezes anteriores e contabilizava na época 34
acusações, entre estupros, atentados violentos ao pudor e assassinatos.
O “Monstro de Guainazes”era ainda mais feroz do que outro maníaco assustador da década de vinte, José Augusto do Amaral (o “Preto Amaral”ou “Bicho Papão” e “Papão de Crianças”), que entre 1926 e 1927 assassinou e estuprou pelo menos quatro meninos pobres, aterrorizando a cidade. E não seria superado nem mesmo por Francisco de Assis Pereira, o pavoroso “Maníaco do Parque” que, no
decorrer do primeiro semestre de 1998, estupraria e assassinaria com requintes de grande crueldade várias mulheres nas matas do Parque do Estado (zona sul de São Paulo), totalizando pelo menos dez vítimas mortas.
Benedito Moreira de Carvalho tinha predileção por crianças de origem oriental, “caçando” suas presas com absoluta frieza e determinação. O delegado Joaquim Pinto de Castro, que fez o relatório nal sobre os crimes de Benedito,
comentou: “É de assombrar, de estarrecer a alma, o sangue frio com que esse homem se dispunha, no recesso do seu lar, como um negociante ou colecionador,
a catalogar seus crimes.” Tendo passado os últimos vinte e cinco anos de sua vida recolhido no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha (atual Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico “Prof. André Teixeira Lima”), o “Monstro de Guaianazes” ou o “Monstro das Japonesinhas” morreu em 11 de outubro de 1977, calmo e sentado, apesar de franzino e debilitado, aos 68 anos de idade.
Muitos outros crimes famosos continuaram agitando a metrópole (que teve seu primeiro prefeito eleito desde a República Velha em 1953, Jânio da Silva Quadros) no decorrer da década de 1950.
Podem ser citados, o caso do primeiro seqüestro signicativo de criança ,ocorrido em 17 de abril de 1956, do menino Eduardo Jayme Benevides, que tinha três anos e meio de idade e foi localizado graças ao cachorro pastor alemão da Força Pública Dick , e o de Florinda Marques Alves, que foi parar nas manchetes de jornal em julho de 1956 sob o epíteto de a “Esquartejadora da Casa Verde”. Ofendida e agredida pelo marido, Florinda matou-o a marteladas, esquartejou o corpo com a ajuda do amante da irmã enfermeira e atirou os pedaços, acondicionado em três malas, no Rio Tietê. A “Esquartejadora” seria defendida pelo famoso criminalista Paulo José da Costa Jr. (um dos maiores estudiosos dos crimes históricos em São Paulo), que conseguiu a inacreditável proeza de absolvê-la em primeira instância por legítima defesa. Pegou apenas dois anos por ocultação de cadáver.
Da mesma forma, podemos falar da tragédia do médico Abelardo Paiva, que matou na Igreja Santa Terezinha, em Higienópolis, bairro nobre da cidade, o industrial Silvio Marchioni, no dia 15 de janeiro de 1959. Silvio, assassinado a tiros, Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 101 havia acabado de se casar com a ex-noiva do médico, Silvia Rosalinda Sampaio, e Abelardo, enlouquecido de ciúmes friamente acabou com o noivo.
Uma das famosas criminosas da época, entretanto, foi Cezarina Martins do Nascimento, a “Macumbeira da Morte”. Proprietária de uma tenda de umbanda na Lapa, onde atendia muitos clientes, inclusive das classes mais abastadas, Cezarina procurava resolver os problemas conjugais de suas consulentes preparando todo tipo de poções emporcalhadas ou envenenadas (pinga com raspas de unha, pedaços de cobra, inseticida) e, em casos mais extremos, servindo aos maridos delas comida caseira fartamente temperada com formicida e vidro moído. A “Macumbeira da Morte” foi presa em 7 de janeiro de 1959, fugiu, mas foi recapturada anos mais
tarde e levada a julgamento pelo assassinato do ferroviário João Rosa, intoxicado pelas “guloseimas” da mãe-de-santo. Acabou condenada a 14 anos de prisão, mas permaneceu para sempre um mistério o número total de vítimas de Cezarina.
Crescimento e autoritarismo
Outros tempos, novos problemas e muitos crimes. Era assim que São Paulo, crescendo e se enovelando cada vez mais, adentrava nos anos sessenta. Na gestão de Francisco Prestes Maia, que voltava à Prefeitura em abril de 1961, eleito pelo voto popular, o compromisso era a implantação de uma “administração técnica” que atacasse os problemas fundamentais da capital, priorizando os serviços urbanos, como a melhoria das condições de transporte, a reticação do Tietê e os mercados distritais. As novas e cada vez maiores periferias caram em segundo plano, secundarizadas e, com elas, as áreas sociais. Atendia-se, assim, as demandas de uma burguesia mais complexa, que procurava sosticar a atividade industrial e nanceira da maior metrópole da América Latina, capital dos negócios brasileiros.
O crime, seguindo a esteira do desatendimento social e de novas possibilidades de lucro, também se revigorou. Assaltos à mão armada tornaram-se cada vez mais freqüentes, e os roubos de automóveis começaram a ser constantes. Um dos principais atrativos aos ladrões já eram os estabelecimentos bancários e nanceiros. O assalto da década ocorreu em 27 de janeiro de 1965, quando uma quadrilha cheada pelo grego Evangelos Demitrius Flegas conseguiu roubar a estratosférica quantia de meio bilhão de cruzeiros do Banco Moreira Sales, na Praça do Patriarca. Um dos assaltantes, Garifalous Nicolas Krassas assassinou o bancário José Pepe quando este reagiu ao roubo, na Rua Líbero Badaró.
O crime mobilizou toda a polícia paulista. Nunca a Secretaria de Segurança Pública, na época comandada por Cantídio Sampaio, havia gasto tanto dinheiro para elucidar um caso. Apesar do Banco Moreira Sales ter arcado com parte das despesas, a polícia gastou em um mês toda a verba prevista para o primeiro 102 Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 trimestre do ano. Após todo esse esforço, os gregos foram capturados e a quase totalidade do produto do assalto recuperada.
Crimes bárbaros e patológicos também continuaram na pauta da imprensa
e nos olhos do público, como o caso de Francisco Costa Rocha, o “Chico Picadinho”, que por duas vezes, em 2 de agosto de 1966 e 15 de outubro de 1976, matou e retalhou em várias partes o corpo das mulheres vitimadas. Dotado de personalidade psicopática, “sádica e perversa”, “Chico Picadinho” ainda está connado na Casa de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté. Outro maníacestuprador e assassino que aterrorizou os paulistanos foi o chamado “Monstro do Morumbi”, que agiu em São Paulo entre 1969 e 1970, tendo sido preso tempos depois em Belém do Pará. Neste caso, não podem ser citados nomes, visto que o “Monstro do Morumbi” já cumpriu sua pena e está atualmente em liberdade.
Um grande emblema da década de sessenta foi o “Esquadrão da Morte”, organizado pelo delegado torturador Sérgio Paranhos Fleury, que possuiu policiais justiceiros célebres, como “Correinha” e “Fininho”. O “Esquadrão” agiu sobretudo entre 1968 e 1970, anos de tremenda repressão política na cidade e no país, com os torturadores do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social, criado
em 1924 e reformulado para Departamento Estadual de Ordem Política e SocialDEOPS, em 1975) e da Operação Bandeirantes (vinculada ao Exército, através do DOI-CODI) barbarizando impunemente não só os opositores da ditadura militar brasileira, mas todo e qualquer suspeito de “subversão” ao regime. Também foram tempos de enorme corrupção policial, de extorsão e promiscuidade entre os que deveriam representar a lei e o mundo do crime.
É importante ressaltar que , nas décadas de 1960 e 70, incrementou-se muito o processo de privatização dos interesses coletivos pelos donos do poder paulistano, estruturando uma relação na qual a maioria dos habitantes passou a ver o espaço público apenas como propriedade privada do poder constituído, e jamais como responsabilidade coletiva dos cidadãos. Este patronato político
usou e abusou da coisa pública como coisa sua, manipulando a vontade as camadas populares e tratando a cidade como um “problema urbano” que devia ser equacionado e resolvido unicamente pela administração legalmente estabelecida. Ano após ano, o destino da cidade foi sendo negociado com os interesses econômicos, através de instrumentos como cooptação, corrupção, lobby ou outras formas de repressão utilizadas pelos que conseguiam ter acesso à mesa centralizadora de decisões.
Na década de oitenta, com a crise econômica e o questionamento da ordem político-institucional do país, a questão urbana se politizou intensamente e entraram em cena atores até então menos articulados. A politização do urbano em São Paulo, na verdade, remonta à própria constituição de um território popular: durante os anos de expansão das periferias, em cada precário bairro novo que se Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 103 formava, micromovimentos reivindicatórios se organizavam para conseguir água, luz ou extensão de linhas de ônibus para o local. O interlocutor desses movimentos foi, desde sempre, o poder público, de quem se esperava obter as melhorias desejadas. Toda uma rede de intermediações políticas se constituiu a partir daí, marcando o recrudescimento do clientelismo e do populismo como forma de relação da sociedade civil com seus representantes, quando começou a se dar a erosão
nal da ditadura militar. Sob essa perspectiva, bens e serviços urbanos se transformaram (como já havia ocorrido na metade da década de 1940 e nos anos 50) em estratégicas moedas de barganha, capazes de assegurar votos ou determinar esferas de controle político.
Até o nal dos anos oitenta, mesmo após a volta da autonomia municipal, tivemos, então, ações do poder público pautadas por maquiagens democráticas expressas no pseudo-atendimento às demandas dos movimentos reivindicatórios mais politizados, mesclados com os mesmos procedimentos tecnocráticos de intervenção no espaço urbano. Projetos de obras faraônicas, que causaram impacto na mídia mas não se levantaram do papel, serviços atrelados aos interesses de grupos econômicos, monumentos reverenciados e arcos arquitetônicos iluminados, ruas bem cuidadas somente em bairro de classe média alta e todo tipo de teatralidade marcaram os anos oitenta, sobretudo no período da administração Jânio Quadros (1986-1988).
Na base, tudo isso permaneceu contraposto à necessidade da maioria da população urbana cada vez mais empobrecida e espoliada por um modelo concentracionista, tanto de renda como dos benefícios inerentes à vida das pessoas na cidade. Nas enormes periferias, nos loteamentos e assentamentos clandestinos, nos cortiços e nas favelas, o Estado se liqüefazia e a normas passavam a ser aquelas ditadas pela marginalidade e criminalidade.
Essa São Paulo de crescimento e pobreza dos anos setenta e oitenta, com seus inumanos processos de segregação e exclusão social - sobretudo das periferias - criou um verdadeiro “Manual Prático do Ódio”, parafraseando o título de um livro do jovem escritor do Capão Redondo (um dos bairros mais violentos da cidade), Férrez. Cristalizou-se, assim, a verdadeira banalização da vida na cidade, com furtos, roubos, estupros, homicídios, latrocínios e seqüestros cada vez mais constantes e comuns.
No plano dos crimes passionais e da violência contra a mulher, não se pode deixar de mencionar a tragédia de Eliane de Grammont, barbaramente assassinada por seu ex-marido, o cantor Lindomar Castilho. No começo da madrugada de 30 de março de 1981, Eliane, uma bela cantora de 26 anos, apresentava-se no café Belle Époque, na Alameda Santos, acompanhada pelo violão de Carlos Randall,
primo do ex-marido. Lindomar, famoso cantor de boleros da época, inconformado com a separação, tomado de ciúme e fúria, aproximou-se rapidamente dos 104 Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 artistas e disparou cinco vezes seu revólver Taurus calibre 38. Eliane deixou uma lha, então com 5 anos, e uma enorme indignação na população de São Paulo.
Preso e condenado em 25 de agosto de 1984, Lindomar Castilho já há vários anos terminou de cumprir sua pena e está em liberdade. Por outro lado, a tragédia de Eliane foi muito signicativa para a mobilização e o incremento do combate à contra a mulher, com a formação de Delegacias Especializadas e criação de entidades para o atendimento às vítimas.
O surgimento da narcoditadura e a barbárie quadrilheira
A questão da droga e do tráco desde há muito tempo vem se consubstanciando como um dos alicerces da criminalidade em São Paulo, da mesma forma como em todas as grandes metrópoles do mundo. O fascínio pela droga, a experimentação, o uso mais freqüente e a dependência formam a mola propulsora de uma engrenagem monumental que, contemporaneamente, é um dos maiores agelos da humanidade: a narcoditadura , para usar a feliz terminologia que dá título ao último livro do jornalista Percival de Souza. O narcotráco é uma espécie de cimento entre todos os tijolos que formam a muralha do crime, movimento lucros indescritíveis, que se mesclam com tudo, do contrabando e pirataria à corrupção estatal, da indústria da extorsão ao dinheiro de seqüestros.
No nal da década de 1970, a cocaína se insinuou mais fortemente entre a marginalidade, e se alastrou na forma de epidemia na década seguinte. A partir dos anos 90, em São Paulo, a cocaína em pó cedeu lugar ao crack, que tomou conta da periferia e invadiu, inclusive, as prisões, redenindo o mapa da droga e da atividade dos tracantes. A necessidade de divisão do trabalho para ganhar
eciência no tráco e na distribuição da droga levou à formação de novas e muito mais violentas quadrilhas e associações de criminosos.
E por falar em crack, é importante notar que este tipo devastador de droga também signica em São Paulo uma devastadora imagem de degradação urbana, denindo mesmo um verdadeiro território: a “Cracolândia”. Os limites dessa área degradada seriam as avenidas Rio Branco, Duque de Caxias, Rua Mauá, Av. Cásper Líbero e Avenida Ipiranga, na região da Santa Egênia. Ela possui uma
história bastante interessante para ilustrar a desintegração urbana do centro paulistano, e as relações desse processo com a criminalidade.
Parte da região da Santa Egênia/Santa Cecília é conhecida, desde o começo do século XX, como o local da “Boca”. Até meados do século era a maior área de prostituição de São Paulo. Também foi nesse local que se instalaram as maiores
“fumeries”, casas de ópio e maconha para classes abastadas nas décadas de 1920 e 1930. Neste período e nas décadas seguintes, existiram alguns locais de tráco que se tornaram famosos. A maior parte deles se situava próximo a Av. São João. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 105 Em 30 de dezembro de 1953, na gestão do governador Lucas Nogueira Garcez, foram fechadas as casas de prostituição do Bom Retiro. A maioria das prostitutas se instalou na região da Santa Egênia, principalmente no chamado “polígono do pecado”, espaço compreendido entre a Duque de Caxias, Conceição, Timbiras e São João. A poucas quadras dali, próximo as estações ferroviárias, criou-se o “lixão”, compreendido pelas ruas dos Protestantes, Triunfo, Aurora, Vitória e Gusmões. O
tráco de drogas ilícitas acompanhou a prostituição, tendo esta área se tornado o principal centro de distribuição de maconha da capital. Um famoso tracante que atuou no “lixão” foi Joaquim Pereira da Costa, vulgo Quinzinho, que permaneceu
na área da década de 1950 até a de 1980. Outro criminoso célebre que marcou a região foi Hiroito de Moraes Joanides, conhecido como “Rei da Boca”. Menos especializado e mais eclético que Quinzinho, Hiroito não atuava somente numa modalidade criminal, sendo processado repetidas vezes por homicídio, roubo, furto, porte ilegal de arma, falsicação e também por tráco de drogas.
Com o correr dos anos a região compreendida entre a Av. São João até a Estação da Luz foi se tornando uma só, e sua degradação acabou com distinção entre o “polígono do pecado” e o “lixão”. Um dos principais motivos foi o desuso em que caíram as estações Júlio Prestes e Luz. Outro fator foi, provavelmente, a concorrência com a “boca do luxo”, situada próxima a Vila Buarque, que abocanhava os clientes mais endinheirados. Atualmente, a antiga zona boêmia de Santa Egênia é conhecida apenas como “boca do lixo”, numa alusão à baixa prostituição, e a Cracolândia vem protagonizando as mais deprimentes cenas de miséria humana do centro de São Paulo.
A narcoditadura signica também uma espécie de globalização do crime, onde as coisas acontecem de forma gigantesca, rápida e impessoal. O médico Drauzio Varela sintetizou muito bem essa nova ordem que acabou com os bandidos individuais, famosos por sua trajetória marginal e dotados de um simulacro de valores “éticos”. Em suas palavras: “os princípios éticos do passado foram substituídos simplesmente pela lei do mais forte. Entramos na era do crime sem face humana identicável, quadrilheiro, em que a vida do criminoso pode ser suprimida com a mesma imprevisibilidade com a qual ele tira a vida alheia.”(FOLHA
DE S.PAULO, 28 de novembro de 2003)
Vivemos hoje o domínio dos “partidos do crime”, as grandes facções organizadas, como o PCC (Primeiro Comando da Capital), que procuram dominar as prisões e estabelecem uma enorme rede de relações e extorsões. No caso do PCC, São Paulo jamais vai esquecer o domingo cinzento, 18 de janeiro de 2001, o “dia do demônio” do sistema penitenciário paulista.
Ao meio-dia daquele triste domingo, foi promovido o maior motim da história brasileira, talvez sem paralelo em nenhum outro país. Simultaneamente, 29 presídios localizados em 19 cidades do Estado de São Paulo se rebelaram. Conec-106 Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 tada por uma rede de telefones celulares, a liderança do PCC precisou apenas de trinta minutos para assumir total controle da situação a partir do Complexo Penitenciário do Carandiru, na zona norte paulistana. O movimento envolveu cerca de 28.000 detentos, e mais de 10000 familiares que estavam em visita aos presos foram tomadas como reféns.
Com seu lema falsamente comprometido de “paz, justiça e liberdade” o PCC demonstrou, como nunca se viu antes na história do crime organizado em nosso país, que a criminalidade está preparada para tomar o lugar do Estado, e que a barbárie cada vez mais está conseguindo desintegrar a civilização. Outras facções menores, como o CRBC (Comando Revolucionário Brasileiro da
Criminalidade), CDL (Conselho Democrático da Liberdade) e Seita Satânica também agem dentro e fora das prisões, no âmbito estadual e, principalmente, municipal em São Paulo.
Nas grandes avenidas paulistanas pessoas são mortas a tiros sem nenhuma razão, e assaltos nas ruas estão completamente banalizados, sem falar dos infames seqüestros relâmpagos e práticas cotidianas de extorsão. Todos obedecem, e os inimigos dos bandos armados são apanhados, julgados e executados sumariamente. O pior, é que a “grife” do “partido do crime” exerce uma atração enorme para o jovem seduzido pela marginalidade, sobretudo em função de suas tremendas diculdades sociais contemporâneas. E para se drogar, até mesmo rapazes da classe média paulistana já roubam e matam. Inclusive os próprios pais.
Em defesa da civilização nas terras de Piratininga
A Organização Mundial da Saúde (OMS) dene a doença da violência como: “uso intencional de força física ou poder, em ameaça ou de fato, contra uma pessoa, grupo de pessoas ou comunidade, que resulta ou tem potencial de resultar em ferimento, morte, dano psicológico, problema de desenvolvimento ou privação.”
Incessante, recorrente, repetida ao innito no decorrer de nossa história, a violência contemporânea em São Paulo é um mal crônico e assustador. Somos, hoje, cidadãos divididos, fazendo juras de amor e tremendo de medo da megalópole orwelliana que está nos engolindo. O enfrentamento do crime e da violência talvez seja a mais necessária de todas as certezas da contemporaneidade paulistana. Isso não passa pela construção de fossos e muralhas em torno da cidade, como na Idade Média. E nem do controle de suas entradas, da vigilância paranóica dos estranhos, da simples repressão policial e da resposta armada, com mais homens
armados em todas as esquinas.
A solução está na própria defesa da Civilização. No cultivo dos valores civilizatórios fundamentais, no respeito ao outro, na construção permanente e sistemática de mais oportunidades para todos, no absoluto cuidado com a coisa pública e Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v 203 107 na superação do irracionalismo e do obscurantismo das sombras da manipulação política, social e econômica.
No ano dos 450 anos, essa parece ser a reexão mais necessária e a missão mais urgente. Anal, olhando para essa São Paulo mutante, efervescente e avessa a denições, é fácil lembrar que a roda da História não deixa de girar e não gosta de sombras. No começo do século XXI, temos o direito de aspirar uma cidade reinventada pelos que acreditam em fraternidade, dignidade e em uma vida melhor para todos os paulistanos. Retomando a poesia de Mário de Andrade, pode-se buscar nele uma iluminação para nossa visão de futuro:
“São Paulo comoção de minha vida ...
Galicismo a berrar nos desertos da América!”
(...)
“Minha loucura, acalma-te!
Veste o water-proof dos tambéns!
Nem chegarás tão cedo
À fábrica de tecidos dos teus êxtases;
Telefone: Além, 3991
Entre estas duas ondas plúmbeas de casas plúmbeas,
Vê, lá nos muito-ao-longes do horizonte,
A sua chaminé de céu azul.
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