sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Instalação da Assembleia Nacional Constituinte completa 25 anos


O início dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte em 1º de fevereiro de 1987 foi marcado pelo contraste entre a agitação popular de 15 mil pessoas que se concentravam no gramado em frente ao Congresso e a tranquila sessão solene realizada no plenário da Câmara, presidida pelo Ministro José Carlos Moreira Alves, presidente do Supremo Tribunal Federal.

Tão agitados quanto os populares que ocupavam o gramado estavam os bastidores do Congresso, com intensa mobilização das lideranças que se antagonizavam em torno da proposta – já debatida meses antes – de tornar a Assembleia exclusiva até a promulgação da nova Carta, sem o funcionamento ordinário do Senado e da Câmara.

Uma moção aprovada em 30 de janeiro pela bancada majoritária do PMDB (259 dos 487 deputados constituintes) preconizava a suspensão dos trabalhos das duas Casas enquanto perdurassem as atividades da Constituinte. Tal decisão abalaria os poderes do então Presidente da República, José Sarney, que ficaria limitado à coordenação das ações administrativas do seu governo. Evitar que essa proposta virasse lei no país exigiu intensa mobilização, que envolveu emissários do Planalto, governadores, ministros e lideranças parlamentares.

Após muita negociação e todo tipo de pressões políticas sobre os deputados e senadores, a moção caiu por terra no dia 3 de fevereiro, ficando definido que a Constituinte seria mesmo congressual, isto é, os parlamentares acumulariam as funções de congressistas e de constituintes.
Na realidade, esta era a fórmula originalmente concebida e constante do texto de convocação da Assembleia, enviado ao Congresso pelo Presidente da República em maio de 1985. O texto, entretanto, foi indiretamente alterado, durante discussão no Congresso, por uma emenda parlamentar que dele retirava a expressão “sem prejuízo das suas atividades constitucionais”.

A supressão textual deixou a questão da exclusividade da Constituinte em aberto, a critério dos deputados e senadores eleitos em novembro de 1986 com poderes constituintes e também dos 23 senadores eleitos em 1982 sem os mesmos poderes mas igualmente integrantes da Assembleia, com idênticas atribuições dos demais parlamentares, no pleno exercício do mandato que só se extinguiria em 1990.


Humberto de Lucena, José Sarney, Moreira Alves e Ulysses Guimarães


Histórico das Constituições

Em seu pronunciamento durante a instalação da Assembleia, Moreira Alves fez um histórico do constitucionalismo no Brasil, Europa e Estados Unidos, observando que as várias constituições elaboradas, desde 1791 até o fim da primeira guerra mundial, tiveram conteúdo eminentemente político, sendo, em verdade, “instrumentos do liberalismo, cujo espírito está caracterizado no célebre artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que enuncia: A sociedade em que não se assegura a garantia dos direitos nem se determina a separação dos Poderes não tem Constituição.”

O ministro destacou que a nova constituição precisaria “encontrar o ponto de equilíbrio que melhor atendesse, nas complexas relações entre o Estado, a sociedade e o indivíduo, às diferentes realidades nacionais”. Para alcançar a justiça social – prosseguiu o ministro –, seria indispensável a intervenção do Estado que, no Ocidente, atua como “elemento de conciliação entre o capital e o trabalho e procura diminuir as desigualdades socioeconômicas. “Também aqui o necessário é alcançar a melhor forma de equilíbrio nessas relações” – salientou.

Reconhecendo a tendência ao gradual fortalecimento do poder central do Estado em nível federal, Moreira Alves destacou que a disparidade do desenvolvimento dos estados-membros no Brasil de 1987 não contribuía para o crescimento homogêneo e global do país: “indispensável se faz, pois, a busca do ponto de equilíbrio, necessário à nossa realidade, entre a União, os estados e os municípios. (...) Os olhos conscientes da nação estão cravados em vós. A missão que vos aguarda é tanto mais difícil quanto é certo que, nela, as virtudes pouco exaltam, porque esperadas, mas os erros, se fatais, estigmatizam. Que Deus vos inspire”.

Comparando as constituições brasileiras, o ministro assinalou que a Carta de 1946 “enfraqueceu substancialmente o Poder Executivo, fortalecendo o Legislativo sem lhe dar, porém, os meios de agilização normativa, reduzindo o quadro legal do país às leis constitucionais e ordinárias. Permitiu, sem as necessárias cautelas, um pluralismo partidário que, com a adoção do voto proporcional, fragmentou os partidos e admitiu, enfim, fonte de atrito incompatível com o presidencialismo: a possibilidade de Presidente e Vice-presidente serem eleitos por partidos diversos”. Moreira Alves atribuiu a essas características da Carta de 46 as crises políticas ocorridas sob sua vigência: o suicídio de Vargas, o impedimento de Café Filho, o efêmero regime parlamentarista e as tensões que deram margem à revolução de 1964.

Seguindo o comparativo, Moreira Alves criticou o excessivo fortalecimento da União e do Poder Executivo na Carta de de 1967 e na emenda constitucional nº 1, de 1969.

Repercussão

Apesar dos reparos à Constituição de 67 e à emenda de 69, e pela ausência de referências mais explícitas ao engajamento popular no processo que resultou no fim do regime militar e desaguou na Constituinte, o discurso de Moreira Alves gerou certo descontentamento, como relata nota publicada na coluna Informe JB do Jornal do Brasil de 2/2/1987: “o discurso não agradou à maioria dos políticos presentes à solenidade”.
O texto do Informe JB citou as críticas feitas ao discurso pelo ex-senador – então vice-governador de São Paulo – Almino Afonso, que considerou excessiva a alusão à Constituição de 67, “outorgada pela ditadura”, e lamentou a omissão do nome de Tancredo Neves, considerado “obrigatório” em pronunciamentos políticos associados à construção da chamada Nova República. Do deputado Bocaiuva Cunha, do PDT do Rio de Janeiro, a nota reproduziu a frase-protesto: “foi discurso da direita”.

Também sintomático do ambiente de animosidade em relação ao período autoritário recentemente encerrado foi a reação do ex-presidente da UNE, Aldo Arantes, à referência de Moreira Alves à ”revolução de março de 1964”. Aos gritos, Aldo protestou: “Aquilo não foi revolução coisa nenhuma. Foi golpe militar”. Antes, o ministro havia declarado solenemente: “Ao instalar-se esta Assembleia Nacional Constituinte, chega-se ao termo final do período de transição com que, sem ruptura constitucional e por via de conciliação, se encerra ciclo revolucionário”.

Na realidade, o desconforto com a fala do presidente do Supremo não alcançou maior dimensão, entre outros motivos, porque durante a sessão solene não houve nenhum outro pronunciamento. Respaldado pelo regimento e pela posição assumida pelo PMDB e PFL (detentores de dois terços das cadeiras na Constituinte), contrários a manifestações na solenidade, Moreira Alves não deu a palavra a nenhum parlamentar, sequer aos líderes de oito pequenos partidos que antes haviam se inscrito para tratar, inclusive, da proposta de se criar uma assembleia constituinte exclusiva.

O cenário

No plenário da Câmara, entre os principais protagonistas da segunda metade do regime militar, estavam vários nomes eleitos para os seus primeiros mandatos, como o ex-poderoso ministro da Fazenda, Delfim Neto (PDS-SP), e o líder metalúrgico e fundador do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva.
Pela manhã, durante a instalação dos trabalhos, Delfim passara pelo constrangimento de uma prolongada vaia, reveladora dos sentimentos das galerias contra a política econômica por ele executada no período autoritário. Lula, por sua vez, dividiu-se, à tarde, entre a solenidade no plenário e a concentração no gramado do Congresso. Ali, entidades sindicais coordenadas pela CUT, CGT e Contag, militantes partidários e representantes das entidades da sociedade civil e de movimentos populares reproduziram, ainda que em menor escala, a temática e o ambiente crítico, de reivindicação e denúncia, registrado nas campanhas das Diretas e da Constituinte.

Palavras de ordem e faixas das centrais sindicais protestavam contra a privatização de empresas estatais, defendiam estabilidade no emprego, jornada de trabalho de 40 horas, suspensão do pagamento da dívida externa e reforma agrária, entre outras reivindicações. Em passeata ao longo da Esplanada dos Ministérios, encerrada em frente ao Ministério da Justiça, manifestantes reclamaram, além da reforma agrária, a prisão de grileiros que ocupavam terras públicas e perseguiam trabalhadores rurais. Em meio a essas manifestações, um grupo de estudantes de Goiânia promoveu a queima de um grande simulacro de livro em isopor (de 1,50 m de comprimento por 1m de largura), significando o fim da “Constituição da Ditadura”.



A eleição e o discurso de Ulysses

Em 2 de fevereiro, o deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP) foi eleito presidente da Assembleia Constituinte com 425 votos, contra 69 atribuídos ao deputado Lyzâneas Maciel (PDT-RJ). O nome de Lyzâneas foi lançado por um grupo de deputados insatisfeitos com a acumulação de cargos por parte do candidato do PMDB, que já era presidente do partido e horas antes havia sido eleito também presidente da Câmara. Na disputa por este último cargo, Ulysses recebeu 299 votos e seu oponente, Fernando Lyra, obteve 155.
Em seu primeiro pronunciamento como presidente da Assembleia, Ulysses salientou que a Constituinte estava “de costas para o passado” e fortalecida, na sua legitimidade, pela “vigorosa bancada de grupos sociais emergentes”. E acrescentou: “Esses meses demonstraram que o Brasil não cabe mais nos limites históricos que os exploradores de sempre querem impor. Nosso povo cresceu, assumiu o seu destino, juntou-se em multidões, reclamou a restauração democrática, a justiça e a dignidade do Estado”.

Ulysses lembrou que a Assembleia reunia-se sob um mandato imperativo: o de promover a grande mudança exigida pelo povo brasileiro. “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. (...) Estamos aqui para dar a essa vontade indomável o sacramento da lei. A Constituição deve ser – e será – o instrumento jurídico para o exercício da liberdade e da plena realização do homem brasileiro”, afirmou.

Enfático ao abordar a transição política que o país vivia e ao proclamar a preocupação dos constituintes com a questão social, o presidente continuou: “Toda a história política tem sido a da luta do homem para realizar, na terra, o grande ideal de igualdade e fraternidade. Vencer as injustiças sem violar a liberdade pode parecer programa para as sociedades da utopia, como tantos sonhadores escreveram, antes e depois de Morus, mas na realidade é um projeto inseparável da existência humana, e que se cumpre a cada dia que passa”.

Numa indisfarçada alusão ao período autoritário, Ulysses observou: “Os momentos de despotismo, com todo o assanho dos tiranos, são eclípticos. Prevalece a incessante expedição da humanidade para a realização do Reino de Deus entre os homens conforme a grande esperança cristã. Conduzir essa caminhada é tarefa da política. Sem esse ideal maior, a política desce de sua grandeza à superfície das disputas menores, do jogo ridículo do poder pessoal, da acanhada busca de glórias pálidas e efêmeras”.

Depois de afirmar que a grande maioria do novo Parlamento representava “a incontível reivindicação de coragem reformadora exposta na campanha das diretas”, Ulysses ressaltou que essa maioria constituía garantia bastante de que a futura Constituição seria voltada para a liberdade, para a justiça e para a soberania nacional. Seu discurso anteciparia uma das características marcantes da Carta de 88, que dedica seu primeiro capítulo aos direitos e garantias individuais e coletivos dos cidadãos, relegando ao segundo plano a organização do Estado, a economia e a questão fiscal.

Tom nacionalista

A cena internacional estava impactada pela crise do mundo socialista e a pressão sobre a União Soviética, que levaria à queda do Muro de Berlim um ano após a promulgação da Constituição de 1988. Os Estados Unidos viviam o apogeu da “Era Reagan” (1981-1989) e a Europa rendia homenagens às medidas neo-liberais de Margareth Tatcher (1979-1990). Em seu discurso, Ulysses incorporou forte teor nacionalista, adotando conceitos e teses defendidos por vários segmentos então chamados de progressistas, que reclamavam, principalmente, maior controle sobre a atuação e remessa de lucros de empresas multinacionais, preferência à empresa nacional nas compras do governo, reserva de mercado às mineradoras nacionais e a definição de empresa nacional, com vantagem sobre as estrangeiras ou de capital majoritariamente estrangeiro. Condenou a “insânia dos centros financeiros internacionais e os impostos que devemos recolher ao Império mediante a unilateral elevação das taxas de juros e a remessa ininterrupta de rendimentos(...), brutal mais-valia internacional, que nos é expropriada na transferência líquida de capitais”.

Os pontos abordados pelo presidente Ulysses Guimarães em seu primeiro discurso pautaram a agenda da Assembleia Constituinte desde o início dos trabalhos. Durante meses, foram debates exaustivos nas comissões e plenário. Muitos deles terminaram incorporados ao texto final da Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988.

Marcondes Sampaio

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