sábado, 30 de julho de 2011

Crack - DRAUZIO VARELLA

Craqueiras e craqueiros***
>
> DRAUZIO VARELLA
>
> Não seria mais sensato construir clínicas pelo país com pessoal treinado
> para lidar com dependentes?
>
> A CONTRAGOSTO, sou daqueles a favor da internação compulsória dos
> dependentes de crack.
> Peço a você, leitor apressado, que me deixe explicar, antes de me xingar
> de
> fascista, de me acusar de defensor dos hospícios medievais ou de se
> referir
> à minha progenitora sem o devido respeito.
> A epidemia de crack partiu dos grandes centros urbanos e chegou às cidades
> pequenas; difícil encontrar um lugarejo livre dessa praga.
> Embora todos concordem que é preciso combatê-la, até aqui fomos incapazes
> de
> elaborar uma estratégia nacional destinada a recuperar os usuários para
> reintegrá-los à sociedade.
> De acordo com a legislação atual, o dependente só pode ser internado por
> iniciativa própria. Tudo bem, parece democrático respeitar a vontade do
> cidadão que prefere viver na rua do que ser levado para onde não deseja
> ir.
> No caso de quem fuma crack, no entanto, o que parece certo talvez não o
> seja.
>
>
> No crack, como em outras drogas inaladas, a absorção no interior dos
> alvéolos pulmonares é muito rápida: do cachimbo ao cérebro a cocaína
> tragada
> leva de seis a dez segundos. Essa ação quase instantânea provoca uma onda
> de
> prazer avassalador, mas de curta duração, combinação de características
> que
> aprisiona o usuário nas garras do traficante.
> Como a repetição do uso de qualquer droga psicoativa induz tolerância, o
> barato se torna cada vez menos intenso e mais fugaz. Paradoxalmente,
> entretanto, os circuitos cerebrais que nos incitam a buscar as sensações
> agradáveis que o corpo já experimentou permanecem ativados, instigando o
> usuário a fumar a pedra seguinte, mesmo que a recompensa seja ínfima;
> mesmo
> que desperte a paranoia persecutória de imaginar que os inimigos entrarão
> por baixo da porta.
> A simples visão da droga enlouquece o dependente: o coração dispara, as
> mãos
> congelam, os intestinos se contorcem em cólicas e a ansiedade toma o corpo
> todo; podem surgir náuseas, vômitos e diarreia.
> Quebrar essa sequência perversa de eventos neuroquímicos não é tão
> difícil:
> basta manter o usuário longe da droga, dos locais em que ele a consumia e
> do
> contato com pessoas sob o efeito dela. A cocaína não tem o poder de adição
> que muitos supõem, não é como o cigarro cuja abstinência leva o fumante ao
> desespero esteja onde estiver.
> Vale a pena chegar perto de uma cracolândia para entender como é primária
> a
> ideia de que o craqueiro pode decidir em sã consciência o melhor caminho
> para a sua vida. Com o crack ao alcance da mão, ele é um farrapo
> automatizado sem outro desejo senão o de conseguir mais uma pedra.
> Veja a hipocrisia: não podemos interná-lo contra a vontade, mas devemos
> mandá-lo para a cadeia assim que ele roubar o primeiro transeunte.
> A facção que domina a maioria dos presídios de São Paulo proíbe o uso de
> crack: prejudica os negócios. O preso que for surpreendido fumando apanha
> de
> pau; aquele que traficar morre. Com leis tão persuasivas, o crack foi
> banido: craqueiras e craqueiros presos que se curem da dependência por
> conta
> própria.
> Não seria mais sensato construirmos clínicas pelo país inteiro com pessoal
> treinado para lidar com dependentes? Não sairia mais em conta do que arcar
> com os custos materiais e sociais da epidemia?
> É claro que não sou ingênuo a ponto de acreditar que, ao sair desses
> centros
> de tratamento, o ex-usuário se tornaria cidadão exemplar; a doença é
> recidivante. Mas pelo menos ele teria uma chance. E se continuasse na
> cracolândia?
> E, se ao receber alta contasse com apoio psicológico e oferta de um
> trabalho
> decente, desde que se mantivesse de cara limpa documentada por exames
> periódicos rigorosos, não aumentaria a probabilidade de permanecer em
> abstinência?
> Países, como a Suíça, que permitiam o uso livre de drogas em espaços
> públicos, abandonaram a prática ao perceber que a mortalidade aumenta. Nós
> convivemos com cracolândias a céu aberto sem poder internar seus
> habitantes
> para tratá-los, mas exigimos que a polícia os prenda quando nos incomodam.
> Existe estratégia mais estúpida?
> Faço uma pergunta a você, leitor, que discordou de tudo o que acabo de
> dizer: se fosse seu filho, você o deixaria de cobertorzinho nas costas
> dormindo na sarjeta?

Nenhum comentário:

Postar um comentário