segunda-feira, 25 de abril de 2011

O médico e o cangaceiro? (*Archimedes Marques)



O médico e o cangaceiro?
(*Archimedes Marques)

A minha avó Helena Motta Marques, quando ainda com vida e lúcida, contava
uma história ocorrida em Nazaré das Farinhas, cidade do sertão da Bahia,
na madrugada do dia 27 de maio de 1929, época em que ela e o meu avô
Archimedes Ferrão Marques, então médico, naquele município residiram por
alguns anos.

O meu avô que era médico daqueles que de tudo fazia para ajudar as pessoas,
além de ter um cargo estadual como sanitarista possuía também uma farmácia
tipo drogaria onde atendia aos doentes e ali mesmo quase sempre manipulava
e vendia os remédios que ele próprio receitava. A farmácia que servia de
aprendizado e de complemento de renda familiar lhe dava outros bens de
consumo, além da satisfação de curar doentes e salvar vidas, vez que, quando
os seus pacientes não podiam pagar com dinheiro, presenteavam-no com
galinhas, patos, cabritos, porcos e outros animais. Assim eles viveram uma
vida dura e simples em Nazaré das Farinhas naquele tempo de muito trabalho,
mas também de boas realizações e excelentes lições de vida.

O meu avô Archimedes era muito caridoso e atendia qualquer um a qualquer
hora, independente da pessoa ter ou não como pagar pela consulta ou pelo
medicamento utilizado. Bastava bater na porta da sua casa que ficava anexa
a sua farmácia, que ele medicava, fazia curativos, pequenas intervenções
cirúrgicas, engessamento em traumatismo de pernas e braços e até partos
realizava com o maior prazer possível. Era médico por vocação, amava a sua
profissão e tentava seguir fielmente o Juramento de Hipócrates.

Naquele dia, mais de perto na calada da madrugada, em meados das primeiras
horas, chegaram a sua casa dois homens montados a cavalo, um deles com
um dente bastante inflamado e “urrando” de dor, querendo a qualquer custo
que ele o arrancasse e lhe livrasse daquele atroz sofrimento. Não bastaram
as desculpas do meu avô em dizer que somente poderia aliviar a sua dor,
pois não era dentista e sim um médico e, além disso, nunca tinha arrancado
um dente na sua vida, além de não possuir os instrumentos pertinentes
necessários para uma perigosa extração como aquela demonstrava ser.

O homem desesperado puxou de um punhal dizendo que se ele não
arrancasse o seu dente seria sangrado ali mesmo sem dó ou piedade.
Diante do novo “argumento” não restou outra alternativa senão cumprir a
vontade do bandido. Aflita e trêmula de medo a minha avó logo foi buscar um
alicate comum na caixa de ferramentas e o colocou para esterilizar em água
fervente, enquanto o meu avô aplicava injeção de morfina na boca inchada do
intransigente paciente e depois de muito suor, desespero, gemidos e luta do
alicate com a boca, o dente do cidadão finalmente foi extraído. Em seguida
o meu avô fez uma boa limpeza em toda a boca infeccionada do paciente,
aplicando-lhe uma injeção antibiótica e, recomendando por fim, além da higiene
necessária, repouso absoluto nos dois dias seguintes.

O homem agradecido e aliviado, em demonstração de possuir algum
sentimento, tirou um anel de ouro de um dos seus dedos e o deu como
paga ou presente para o meu avô que então mais à vontade, criou coragem
para perguntar pelos nomes deles, obtendo a resposta do outro cidadão
acompanhante, que os seus nomes não lhe interessava e se ele tivesse
juízo que ficasse calado sobre o ocorrido para não ter um dia a sua garganta
cortada. Em seguida montaram nos seus cavalos e desapareceram no escuro
da noite para sempre.

Por via das dúvidas, diante do iminente perigo da ameaça e com receio
dos homens voltarem em vingança caso fossem denunciados e presos, os
meus avós preferiram guardar segredo dos fatos durante o tempo em que
naquela cidade permaneceram, não prestando queixa à Polícia nem tampouco
comentando com vizinhos e amigos sobre o desespero e terror pelos quais
passaram naquela noite.

Diz o velho ditado que não há um mal que não traga um bem. Assim, a
lição e o exemplo vividos pelo casal que inclusive já tinha filhos menores,
serviram para que o meu avô adquirisse os instrumentos dentários essenciais
e passasse também a extrair dentes, sendo então, mais uma fonte de
satisfação e caridade aos mais necessitados que passavam pela angustia
dessa insuportável dor, além do somatório próprio da renda familiar, vez que
no município não existia um dentista sequer. Contava a minha avó que por
vezes a fila para extrair dentes era bem maior do que as consultas médicas
tradicionais realizadas pelo meu avô Archimedes.

Quanto aos dois desconhecidos que a minha avó dizia ser de compleição
física sertaneja e rude, de cor morena queimada pelo sol e que usavam roupas
grosseiras com bornais de couro e outros apetrechos, nunca souberam de
quem se tratavam.

Teriam sido cangaceiros desgarrados de algum grupo de Lampião ou teriam
sido criminosos outros procurados pela Polícia?... Como não há nenhum
registro de ataque ou presença de cangaceiros no município de Nazaré das
Farinhas é mais provável a segunda opção.

A titulo de ilustração transcrevo o breve currículo do meu avô, colhido no site
http://linux.alfamaweb.com.br/asm/dicionariomedico/dicionario.php?id=31900:

Archimedes Ferrão Marques.

Nasceu em 2 de julho de 1892, em Salvador/BA, filho de Ernesto dos Santos
Marques e Ana Ferrão Moniz Marques. Formou-se pela Faculdade de Medicina
da Bahia em 1917, defendendo a tese “Raspagem Uterina”. Iniciou suas
atividades médicas em 1918, combatendo a epidemia de varíola que grassava
em todo o interior da Bahia, sendo em razão disso nomeado Inspetor Sanitário
do 10º Distrito da Bahia e membro da Comissão Sanitária Federal de Combate
à Febre Amarela. Em seguida, ainda em Salvador, foi transferido para o serviço
de Saneamento Rural, onde fez carreira como médico, subinspetor, inspetor
e chefe de distrito e zona até dezembro de 1930. Nomeado Sanitarista do
Ministério da Saúde, atuou na Delegacia Federal de Saúde da 5ª Região
da Bahia. Transferiu-se para Recife, onde atuou na Delegacia Federal de
Saúde e Inspetoria de Saúde dos Portos, durante a 2ª Guerra Mundial. Em
1945 é designado para a Delegacia de Saúde da 6ª Região, em Aracaju.
Cumulativamente exerceu o cargo de médico da Caixa de Aposentadorias e
Pensões da Leste Brasileira. Atuou como clínico e obstetra. Faleceu em 17 de
março de 1968, em Salvador/BA, com 76 anos.

(*Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em Gestão
Estratégica de Segurança Publica pela Universidade Federal de Sergipe)
archimedes-marques@bol.com.br

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