Verdades e mentiras do falso coronel que trabalhou na cúpula da segurança
Fonte: Extra
Andar lento, uma das mãos no bolso da calça de linho, a outra no cigarro, o falso tenente-coronel Carlos da Cruz Sampaio Junior demonstra que perdeu o posto na Secretaria de Segurança do Rio ao ter sua verdadeira identidade revelada, mas não a pose. Ao quebrar o silêncio pela primeira vez desde a sua prisão, em outubro de 2009, Sampaio deixa às claras que precisou de lábia e de um programa de computador para deixar de ser um administrador do Zoo-Rio, preocupado em evitar o roubo de arara-azul, e se tornar um homem da cúpula da Segurança do estado.
Com o crachá forjado de militar do Exército, ele se infiltrou nas salas de inteligência da Segurança, coordenou operações, implantou sua metodologia e deu cursos de tiro para policiais em batalhões. Até que “uma bala acertou seu pé”. O homem que vivia o conto de fadas particular de ser um super-herói transpôs a portaria do prédio da Secretaria, como se rompesse a barreira da ficção para a realidade, já com o papel de vilão para as autoridades. E, na cadeia, foi convidado a treinar traficantes.
— Eu tinha um personagem que eu exercia para desenvolver um trabalho, que deveria surtir efeito em prol da sociedade. Aquele era o personagem, mas o Carlos Sampaio é diferente — alega: — Fui ilegal, mas não fui imoral.
Desmascarado, sem a patente que forjou no photoshop (programa de computador para alterar imagens) e garantiu verbalmente ostentar, seguiu diretamente para a Polinter (Grajaú) por portar um revólver calibre 38 — ainda responde processo por falsa identidade. Era um estranho no ninho aquele filho de militar que, em dois períodos, sustentou teorias e estratégias e tinha a visão do mundo do crime pelo lado do bem. Entre as grades, onde permaneceu por 61 dias, ganhou a robustez de heróis em quadrinhos para combater a criptonita dos marginais de facções criminosas.
Encorajado a escrever um livro, intitulado “As gemadas de um coronel sem estrelas” — já finalizado —, Sampaio recusou oferta para treinar traficantes e recebeu visitas de policiais da ativa, que, ao vê-lo cabisbaixo, repetiam: “Coronel, levanta a cabeça. O que o senhor fez não se apaga!”.
— Todos me respeitaram (cadeia). Tive momentos difíceis. Fiquei em cima do muro quando fui convidado para treinar traficantes. Era uma quantia significativa. Eram mais de cinco zeros. Isso foge à minha natureza. Sempre combati o crime.
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Do zoológico para a Secretaria de Segurança: ‘Nasce’ o coronel
O amor à gemada (patente) estava no DNA. A dedicação, na veia. Era natural que um filho de militar posasse para fotos com farda e armas de brinquedo. Estudante do Colégio Militar de Brasília, não conseguiu avançar pela Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Foi reprovado. Inegável a frustração. Ingressou no curso de Direito da Faculdade Gama Filho. Faltando quatro períodos, largou. Por meio de um convite, assumiu função no Instituto Estadual de Meio Ambiente. Mais a frente, num cargo na Fundação Zoo-Rio, poria as garras de fora. Diante de registros de roubos de animais no Zoológico, não saía da 17ª DP (São Cristóvão). Uma arara-azul, diz ele, tem o custo de um fuzil.— Brincavam comigo, dizendo que era melhor deixar um formulário pronto com o meu nome. Até que convidei os delegados para conhecerem o zoológico — conta.
Na visita, os delegados se impressionaram com o catálogo feito por Sampaio para conferir a quantidade de animais. Era um obcecado por segurança. Na gíria, era um chato. Até que, ao sair do Rio Zoo, acabou contratado por uma dessas empresas. Foi um passo animal para entrar na Secretaria de Segurança. Em 2003, com Luiz Torres, um dos delegados da 17 DP à época, Sampaio Junior pôs seus pés na Seseg com cargo comissionado, feito por indicação. Mal tinha cadeira e os fios pendurados o incomodavam, além dos serviços burocráticos. Via nos manuais empoeirados de polícia o brilho do sonho. Passou noites em claro. Montou estratégias. Mas era um ”PI”, conhecido como pé-inchado pela ausência de estrelas, rótulo que o incomodava. Seus projetos, sustenta, pouco, ou nada, eram ouvidos.
— Todos se impressionavam com ele. Era muito hábil, rápido. Muitas vezes, devido à facilidade dele com o computador, rapidamente conseguia informações jurídicas na internet e sabia mais do que eu e outros policiais — diz Torres.
Em 2006, após ser responsável por montar uma base no Conjunto Nova Sepetiba I, sendo acusado de assédio sexual — não comprovado pela Corregedoria —, Sampaio deixou a cúpula da Segurança, mas não se desligou do sonho. Debruçou-se mais sobre biografias e livros que lhe renderiam conhecimento. Devorou mais de 50 calhamaços: Bin Laden, o Homem que declarou guerra à América; Comando Vermelho; cadernos de instrução do Ministério da Defesa; “Arte da guerra”, de Sun Tzu; registro de ocorrências da Polícia Civil do Rio... Paralelamente, tocava sua empresa de prestação de serviços na área de limpeza, conservação e, claro, oferecia segurança a empresas privadas.
— Consulados de outros países trabalhavam com o meu serviço de portaria.
Movido a adrenalina, a vida se tornava monótona. Com a empresa Caçadores de Aventura, mais tarde Via Guarani, Sampaio comandava cursos de rapel, sobrevivência... Participava também de equipes de paintball, sempre em pistas que simulavam a guerra urbana do Rio. Em fotos, a farda parecida com a da Polícia Militar do Rio aproximava da realidade:
— Era comprada da China, por site. Lá, tem uma equipe de paintball como esse uniforme.
Como diretor da Associação dos Alunos do Colégio Militar, Sampaio deu cursos.
— Não era pelo Colégio Militar. Era pela associação. Sem arma de verdade. Só você considerar espingarda de chumbinho, que qualquer um compra, em qualquer lugar...
Entre uma tarefa e outra, ele não saía de casa. Sua mãe, dona Terezinha, lhe apelidou de ”eletrodoméstico”. O computador era o ombro amigo, fonte de esperança. O tempo passava e ele armazenava dados. Montado em estatísticas, formulou estratégias de policiamento. Sempre com a tecnologia e a lábia. E, meio que por obra do destino, Sampaio regressaria à sua praia. Ele foi ao 6 Batalhão de Polícia Militar (BPM) resolver uma questão referente ao Boletim de Registro de Acidente de Trânsito (Brat), em 2009. Encontrou amigos que deixou na Seseg e, por fim, estava à mesa num almoço com oficiais e o coronel Fernando Príncipe, sedento por reduzir índices criminais na Grande Tijuca. De fato, em carne e osso, nascia o Major Sampaio. Sustentando que suas ideias esbarravam na falta de respaldo, ele inventou que havia conseguido judicialmente o direito de reaver sua patente. Imediatamente, ao “conseguir o direito”, saltou para tenente-coronel.
— Ué.. Basta dizer.. Basta dizer.. E as pessoas acreditaram... — explica ele o “processo” de efetivação imaginário.
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Com lábia, coronel sobe na hierarquia e cai. Agora, quer estudar arqueologia
Com a redução dos índices na área da Tijuca, ele foi convidado pelo Comando-Geral da PM a presenciar palestras como autor da ideia. Informada do projeto, a Secretaria de Segurança convidou Sampaio para apresentá-lo a oficiais na sede da secretaria. Ele nega a presença do secretário José Mariano Beltrame e relata o diálogo após a explanação:
“Ah, olha, a Secretaria tem interesse de te contratar para você desenvolver esse projeto e tal.”
— Tá, tudo bem! Mas agora eu não posso. Recusei a primeira vez, a segunda vez e, na terceira vez, quando eu vi que o projeto poderia ganhar uma divulgação maior, ele poderia surtir mais efeito. Tudo bem! Vamos lá!, eu aceitei.
“Quanto você quer?”
— Me dá 2 mil aí. Poderia ter pedido 5, 6 mil.
Para dar veracidade à farsa, em 2009, ele precisava de um documento oficial. No photoshop, providenciou a pose com quepe, farda e as gemadas de tenente-coronel. Ao deixar o gabinete e ir aos batalhões passar noites em claro, sentia a sensação de o super-herói sair das páginas. Nos batalhões, dava ordens e ficava ao lado dos policiais na rua. No 17 BPM (Ilha do Governador), comandou uma blitz que terminou com a morte de um homem, supostamente ladrão de automóveis. Flagrado com um fuzil M16 ao lado de um Palio, com uma poça de sangue, Sampaio acabou denunciado pelo Ministério Público por porte de arma e falsa identidade. O advogado Rodrigo Roca tem 10 dias para sustentar a defesa.
— Eu estava coordenando aquela operação, quando um indivíduo tentou furar a blitz. Ele atirou. Os policiais revidaram. Havia um homem sequestrado dentro do carro — relembra.
Na Secretaria, o ”coronel” crescia na hierarquia. Assumia a coordenação da 1ª Região Integrada de Segurança Pública. À sua disposição, havia uma viatura oficial para locomoção profissional e pessoal. Em agosto, como tal, Sampaio apareceu com colete que ele diz ser de Paintball em imagens na entrada do Hotel Intercontinental, em São Conrado, onde bandidos, que fizeram arrastão, estavam acuados. O Batalhão de Operações Especiais (Bope) negociava a rendição. Ele nega participação, mas admite ter entrado no saguão.
— Tirando aquela foto do cigarro, onde todo mundo comentou, a negociação não estava acontecendo na porta, estava acontecendo dentro do hotel. Antes do término da operação, eu ingressei no hotel — diz.
No mundo do faz-de-contas, Sampaio viu seu castelo de areia se desfazer no dia 14 de outubro de 2010. Saiu do prédio da secretaria para a cadeia. Admite ter errado, mas não se arrepende de jeito algum. A Secretaria informou, em nota, que descobriu a farsa, ao contrário da primeira passagem, entre 2003 e 2006.
— Agi errado porque eu não deveria me importar. Agi errado porque deixei a minha filha várias vezes nos finais de semana sem vê-la. Agi errado porque eu trabalhava 15 horas por dia. Agi errado porque tive que usar um título que não me pertence. Agi errado porque me importei. Agi errado porque me enquadrei num ilícito penal.
No cárcere, Sampaio teve conhecimento dos ataques dos bandidos na cidade, motivando a invasão do Alemão.
— Eu previ. Me avisaram lá dentro e eu disse: “vão invadir o Alemão. Na segunda-feira, me olharam, riram, disseram que não apostariam nada comigo (risos)”.
Enquanto aguarda julgamento, ele já sabe o que vai fazer da vida:
— Hum, Arqueologia!
Haja história...
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